Caos, crise, obsessão, poluição, velocidade. É o apocalipse ou um dia na vida de São Paulo? Nada disso, ou talvez um pouco de tudo isso. Estamos falando do mundo do cartunista Angeli. Estamos no coração de um fantástico curta que estreia esta noite no Festival de Brasília. Beth Formaggini vinha me segurando as mãos quase literalmente para que nada quebrasse o ineditismo exigido pelo festival. Pronto, acabou. Já posso escrever sobreAngeli 24 Horas.
Beth não poderia ter sido mais feliz nesta apresentação do personagem Angeli em meio a seus escrotinhos, bananas, rê bordosas, bob cuspes, freaks, políticos xexelentos, cônjuges monstruosos et caterva. O cronista que criou essa épica do vil é ele mesmo um compulsivo, cara de mal dormido, fala e gestos nervosos, como se fosse explodir dentro de 10 segundos e deixar a parede do estúdio coberta de gosma verde.
O filme potencializa essa identificação entre criador e criaturas colhendo a autoanálise de Angeli num estúdio decorado com motivos gráficos, trabalhando muito com a relação entre figura e sombra, e projetando as tiras sobre seu corpo numa espécie de instalação. Além disso, filma pontos-chave de São Paulo em ritmo acelerado e “encontra” nas ruas figuras reais que poderiam ter inspirado personagens de Angeli. Assim é que artista e cidade se fundem pela lógica dos fluxos incessantes. Embora saia pouco da prancheta, Angeli flutua com sua imaginação mórbida, radical e divertidíssima pelos espaços da metrópole, tal como o anjo de Asas do Desejo. Entre seguir em frente e mudar de rumo, Angeli opta pelas duas coisas.
Eixo quebrado entre as várias câmeras que o filmavam, ele fala de suas grandes inspirações; conta como se livrou de seus personagens mais célebres e das propostas de massificação; como encontrou na tragédia familiar do amigo (e muso) Laerte a deixa para uma guinada em sua carreira; por que prefere os diabos aos deuses na hora de riscar o papel. Para cada afirmação ou dúvida, Beth vai localizar a tirinha adequada para fazer a passagem entre pensamento e obra, movimento e resultado. Como eixo central e justificativa do título, Angeli vai preparando a charge que sairá no dia seguinte num jornal paulista.
Outro elemento fundamental para a incrível coesão artística do filme é a trilha sonoraheavy e aliciante de JR Tostoi (do grupo Vulgue Tostoi). Num de seus melhores momentos, a música sampleia a voz de Angeli numa batida persistente e sublinha a evidência de que tudo nesse filme emana da pulsação de seu personagem. Não são muitos os perfis de artista com esse grau de coerência.